O Marx pediu que eu resenhasse um disco do raulzito para um banquete de lixo e de mendigos na Cozinha do rock, pratos transbordando “nova iorque, catchup e caviar”. Trabalho hercúleo, pois tudo o que o mestre mandou é de primeira. Ainda mais quando o disco escolhido é o Novo Aeon (escolheria o Panela, mas este vem em primeiro) que tem o peso de ser o preferido do Marcelo Nova (e também resenhado pelo mesmo) e de outros caras, amigos raulseixófilos meus desde a mais tenra juventude.
Novo Aeon é um disco recheado de mensagens filosóficas, sátiras aos modismos contemporâneos de Raul, poética, além de abordar temas mais do que variados, como amor, sexo, morte, além de claro rock and roll, comportamento, gerações, consumismo, ideologias, política, entre outros temas, como apenas o Raul soube tratar com sua marca pessoal. Seu parceiro era o letrista Paulo Coelho, hoje membro da ABL e mestre me adaptar contos orientais para fazer vender Best Sellers do momento, como Diário de um mago e o Alquimista, entre outros "livros agourentos, que ninguém entende, mas todo mundo quer ler"...
A primeira
música do disco é uma balada, com uma guitarrinha bluesy, um coral, o hino dos
perdedores que nunca entregam os pontos: “Tente outra vez”! Lute, nunca
desista!
“Rock do
diabo” é um rock que Raul costumava mandar como abertura em shows no inicio da
década de 1980, que era seguida de uma história do rock and roll que Raul
contava e mandava as principais músicas do rock no meio. Raul retoma a relação
do blues com o diabo (mais precisamente com Robert Johnson) e a rebeldia do
rock para desmistificar a figura do diabo pintada pelo cristianismo (“aquele do
exorcista”). No livro Baul do Raul de Toninho Buda e Silvyo Passos, a menção ao
diabo na obra de raulzito é mais detalhada: contém até uma figura de um diabo,
um bode feminino, como fonte de conhecimento, de experiência e sapiência por
ter ousado provar a fruta do conhecimento e desafiado deus. Raul coloca o diabo
nesta música mais como uma fonte de experiência, o diabo da os “toques”
(entendido em sentido amplo, de autoconhecimento), discutindo até a psicanálise
freudiana.
Raul e Paulo
Coelho dão um show de lirismo em “A maçã”, consegue discutir temas como o amor,
o ciúmes e a idéia de amor livre, um amor que não trata o amante como
propriedade ou mercadoria, como se dão as relações capitalistas.
Em “Eu sou
egoísta”, Raul vomita uma série de impropérios contra a religião, a moral e os
costumes contra os ismos totalitários, e retoma a sua afirmação do egoísmo de
Max Stirner, autor de O Único e sua
propriedade. Sem delongas, o filósofo anarquista invidualista, discípulo de
Hegel, dechavado por Marx na Ideologia Alemã critica o aspecto falso das
Igrejas e Estado autoritários,
configurando um libertarismo anti-autoritário. Raul já cantava em primeira
pessoa desde os primeiros discos, como Gita (Eu sou a luz das estrelas, eu sou
a cor do luar...) com a intenção de que quem cantasse, valorizasse seu eu, seu
ego.
Em “Caminhos”,
Raul consegue trazer a belíssima síntese de contrários que é o Real, o mundo, a
contradição heraclitiana, o fogo e a água, o caminho do sangue é o chicote, do
errado é o certo, o caminho da vida é a morte, que será retomado no lado B em
Caminhos II.
Raul e Paulo
Coelho fecham com chave de ouro as cortinas do lado A com “Tu és o MDC da minha
vida”. Propositalmente cafona, brega, uma letra de amor piegas, satirizando um
tipo de classe média modista, moderninha. Emplacam até uma rima do tipo “eu me
lembro do dia em que você entrou num bode/quebrou minha vitrola e minha coleção
de Pink Floyd. Satiriza marcas e programas que muitos nem conhecem hoje, Flávio
Cavalcante, Casas da Banha, Pepsi-cola, Gradiente, representando o consumismo
de modinhas e modernismos misturavam com Shakespeare.
O Lado B traz
um tema ainda presente nos nossos dias, como o choque das gerações. Em “A
verdade sobre a nostalgia”, retoma a discussão: qual é o rock melhor? Qual é a
poesia melhor? O dos cinqüenta ou dos setenta? Raulzito ainda manda: “o rock
hoje em dia já virou qualquer coisa, por isso cortei meu cabelo”, sempre
polêmico.
Um dos pontos
altos do disco é “Para nóia”, em que Raul fala sobre timidez, vergonha de
mostrar seus escritos, bem como o sentimento de culpa cristã para com a
masturbação e o temor de que Deus estava lá, vendo tudo o que se faz dentro do
banheiro.
Peixuxa, o
amiguinho dos peixes, é o netuno ou poseidon com seu tridente. Tem uma levada à
la Beatles proposital, parece infantil, mas na verdade traz uma mensagem
ecológica, denunciando a poluição dos mares – tão atual quanto o desastre no
Golfo do México “E quando eu olho/ o mar com petróleo/eu rezo à peixuxa que ele
fisgue esta gente”. Raul profético? Uma prévia do que Raul faria em Carimbador
Maluco, passando sua mensagem e se vestindo de Proudohn nas barbas do
Monstrosist. Pra entrar num buraco de rato, de rato você tem que transar, diria
raulzito.
Em “Fim do
Mês”, Raul recorre ao seu famoso sarcasmo contra uma vidinha acomodada, uma
crítica ao modismo de maria-vai-com as outras “já fui hippy, beatnick, tinha um
símbolo da paz pendurado no pescoço porque nego me dizia que era o caminho da
salvação”. Algo que o capitalismo faz e nos leva a uma situação absurda kafkiana:
preocupar-se com nossa morte em vida, e não aproveitar essa: “eu já paguei a
prestação do meu tumbão”. Enfim, o sufoco pra pagar as contas, o preço do
feijão que não cabe no poema, e corremos, nos matamos pra ganhar dinheiro e
pagar mais contas do mês seguinte e nunca aproveitamos a vida como deveria ser.
Assim como no
Krig Há, temos uma música em inglês neste disco, Sunseed, com sua parceira da
época, Spacey Glow.
A faixa
Caminhos II emenda com o banjo da faixa título, Novo Aeon. Nesta letra, os
princípios que Raul já havia delineado sobre a Sociedade Alternativa, a Lei de
Thelema: “sociedade alternativa, sociedade novo aeon, são retomados: é o
direito de ser ateu ou de ter fé... direito de ter o prato entupido de comida
que você mais gosta... e até o direito de deixar Jesus sofrer”
Disco
imperdível e fundamental na coleção de qualquer um que curta o mestre Raul. É
impossível não pensar em alguma situação ou não ter passado por alguma reflexão
ou vivência descrita por Raul. E pra quem estranhou que citei o tempo todo
lados, como diria Durval Discos, é que toda vida tem o seu lado A e seu lado B.
(esta é uma resenha que fiz, a pedido do Marx, em 24/06/2010, sobre o disco Novo Aeon, do Raul Seixas. Faz quase dois anos, não encontrava, agora vi, repasso)
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