Desde que me conheço por gente que curto Belchior, ainda que indiretamente. Miha mãe tinha um compacto da Elis Regina com músicas que eram do disco "Falso Brilhante" (aliás, tem ainda até hoje). Nele haviam algumas músicas deste Cearense, que com Fagner, Amelinha, Roger, Teti e Ednardo integraram o Pessoal do Ceará no início dos 1970.
O Belchior sempre foi o mais crú, mais realista de todos, podemos ver muitos fragmentos de sua biografia em suas letras, como a Palo Seco: "tenho 25 anos de sonho e de sangue de américa do sul / Um tango argentino me cai melhor que um blue", esse rapaz latino americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Era esta nordestinidade que o fazia seco, mandar estocadas a palo seco:
"Sei que assim falando pensas
que este desespero é moda em 73
e eu quero é que esse canto torto
feito faca corte
a carne de vocês"
O Belchior sempre foi muito atento aos fatos e acontecimentos de sua época, sempre olho aberto, "o seu delírio era com coisas reais", como bem dizia. Ele nunca deixou de lado suas origens, de migrante nordestino, que como dizia a Lei do Newton, o que caiu do Norte desce pro Sul fatalmente:
"Eu me lembro muito bem
jovem que desce do Norte
Os pés cansados e feridos de andar légua tirana
(...)
Que ficou apaixonado e violento
Como é comum no seu tempo"
Sua ironia com os vendidos é latente e o inconformismo de suas letras,evidente. Assim como sua solidariedade com os vencidos: "Sons, palavras, são navalhas/ E eu não posso cantar como convém/ Sem querer ferir ninguém...". As palavras não foram feitas para agradar, devem soar como um soco na cara, quer goste ou não goste, não são apenas para adular, fazer pose ou média, muito menos para vender apenas (claro que também precisa, não sou nem um pouco purista, mas não só, tem que ter algo mais). Seus versos são como uma faca, que entram a seco, golpes secos, cortando nossa carne e a hipocrisia, o deixar-passar e conformar-se com tudo. Belchior faz regurgitar, vomitar tudo, não engolir de forma alguma.
Podemos ver muitas imagens de sua experiência, como cantor de cabaré, e a relação com as damas, o cafetão bruto: "não saque a arma no sallon, pois eu sou apenas o cantor". É oue vemos na ter ou não ter:
"Quando eu vim para a cidade, eu ganhava a minha vida,
ave-pássaro cantando na noite do cabaré.
E era mais pobre do que eu a mulher com quem dividia,
dia e noite, sol e cama, cobertor, quarto e café.
O Nordeste é muito longe. Eh! saudade. A cidade
é sempre violenta.
Pra quem não tem pra onde ir, a noite nunca tem fim.
O meu canto tinha um dono e esse dono do meu canto
pra me explorar, me queria sempre bêbado de gim.
O patrão do meu trabalho era um tipo de mãos apressadas
em roubar, derramar sangue de quem é fraco, inocente.
Tirava o pão das mulheres - suor de abraços noturnos,
confiante que o dinheiro vence infalivelmente.
(...)
To be or not to be
quer dizer ter ou não ter"
Ele bem que poderia ser o co-autor (e foi, na vida real, sem precisar mesmo escrever) do "Garoto de Aluguel", que fica muito bacana quando canta em seus shows, Às vezes com o Zé Ramalho, numa versão de tango argentino:
Sem escrever aquela coisa com distanciamento, o cara não estava lá apenas para curtir ou tirar um sarro, ele trampou e foi aquilo mesmo, e sabe muito bem como é a escória. Não só tira proveito dela como um turista acidental, mas fez parte dela de verdade.
Às vezes ele nos coloca em uma sensação de angústia e impotência diante do cotidiano, do sem sentido do trabalhar para pagar contas, rolar a pedra de Sísifo para o alto para vê-la rolar montanha abaixo. E começar tudo de novo, no dia seguinte:
"No escritório onde trabalho e fico rico
Quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor"
O trabalho dignifica mesmo o homem, o enobrece, ou o rouba, para enriquecer os outros? Qual a finalidade? Podemos inverter o senso comum: "O trabalho empobrece o homem".
Quanto ao amor, ele é bem franco, ingênuo até quase, mas nunca metafísico em relação ao amor. Despreza a alma, mas não ao amor corpóreo, sensual. Como são as coisas, nada metafísicas, anti-metafísicas, tudo é finito, tudo morre e se finda:
"Quero meu corpo bem livre
Do peso inútil da alma"
Ainda assim, com toda esta peleja e luta para sobreviver, o cara ainda não peredera a ternura e a ingenuidade do amor simples e o gosto por coisas banais:
"Quero a sessão de cinema das cinco
Pra beijar a menina
e levar a saudade na camisa
toda suja de batom"
Segue alguns outros trechos do próprio:
"Já faz tempo
eu vi você na rua
cabelo ao vento,
gente jovem reunida
na parede da memória
esta lembrança
é o quadro que dói mais
(...)
E hoje eu sei
Eu sei!
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Está em casa
Guardado por Deus
Contando seus metais..."
" No presente a mente e o corpo é diferente
e o passado é uma roupa que não serve mais"
" Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço, me sinto são, salvo e forte
(...)
Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro
ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro"
"Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais...
(...)
Um preto, um pobre, um estudante
uma mulher sozinha
(...) pessoas cinzas
e a solidão das pessoas nessas capitais
a violência da noite
Cravos e espinhas no rosto,
rock, hot dog (...)
Amar e mudar as coisas me interessa mais"
"Não cante vitória muito cedo não
nem leve flores para a cova do inimigo"
"Viver é que é o grande perigo"
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